«Não é sinal de saúde estar bem adaptado a esta sociedade doente»
Jiddu Krishnamurti

domingo, 9 de janeiro de 2011

O Diário do Professor Arnaldo – A fome nas escolas


"Ontem, uma mãe lavada em lágrimas veio ter comigo à porta da escola. Que não tinha um tostão em casa, ela e o marido estão desempregados e, até ao fim do mês, tem 2 litros de leite e meia dúzia de batatas para dar aos dois filhos.Acontece que o mais velho é meu aluno. Anda no 7.º ano, tem 12 anos mas, pela estrutura física, dir-se-ia que não tem mais de 10. Como é óbvio, fiquei chocado. Ainda lhe disse que não sou o Director de Turma do miúdo e que não podia fazer nada, a não ser alertar quem de direito, mas ela também não queria nada a não ser desabafar.De vez em quando, dão-lhe dois ou três pães na padaria lá da beira, que ela distribui conforme pode para que os miúdos não vão de estômago vazio para a escola. Quando está completamente desesperada, como nos últimos dias, ganha coragem e recorre à instituição daqui da vila – oferecem refeições quentes aos mais necessitados. De resto, não conta a ninguém a situação em que vive, nem mesmo aos vizinhos, porque tem vergonha. Se existe pobreza envergonhada, aqui está ela em toda a sua plenitude.Sabe que pode contar com a escola. Os miúdos têm ambos Escalão A, porque o desemprego já se prolonga há mais de um ano (quem quer duas pessoas com 45 anos de idade e habilitações ao nível da 4ª classe?). Dão-lhes o pequeno-almoço na escola e dão-lhes o almoço e o lanche. O pior é à noite e sobretudo ao fim-de-semana. Quantas vezes aquelas duas crianças foram para a cama com meio copo de leite no estômago, misturado com o sal das suas lágrimas…Sem saber o que dizer, segureia-a pela mão e meti-lhe 10 euros no bolso. Começou por recusar, mas aceitou emocionada. Despediu-se a chorar, dizendo que tinha vindo ter comigo apenas por causa da mensagem que eu enviara na caderneta. Onde eu dizia, de forma dura, que «o seu educando não está minimamente concentrado nas aulas e, não raras vezes, deita a cabeça no tampo da mesma como se estivesse a dormir».Aí, já não respondi. Senti-me culpado. Muito culpado por nunca ter reparado nesta situação dramática. Mas com 8 turmas e quase 200 alunos, como podia ter reparado?

É este o Portugal de sucesso dos nossos governantes. É este o Portugal dos nossos filhos."

(http://www.aventar.eu/2010/11/19/o-diario-do-professor-arnaldo-a-fome-nas-escolas/)

ADENDA DO PROFESSOR

15 comentários:

  1. Eu tenho uma aluna na 1º ano que vai para escola sem meias em dias que o termómetro não passa dos 3 graus.
    Isto mata-me o coração.

    :(

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  2. Só sei que acabei de ler o texto do Diário do colega Arnaldo e fiquei a chorar . Sei , como a minha dizia ,que sou muito «chorona » .. Mas , de facto choro não só por essas crianças e por essa mãe , por tantas outras crianças e outras mães este país ,mas também por tantos sonhos que a minha geração acalentou e que acabaram por ser todos frustrados ... Mais me parece estar na minha Beira dos anos 50 , onde o pé descalço , a roupa remendada , o «fatoco de pã com zetonas ,para dar para todo o dia » ! , era o habitual . Juro que não foi isso que sonhámos naquela madrugada de Abril...

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  3. Emocionante e arrepiante ao mesmo tempo...Quantas realidades identicas a esta existirão em Portugal? Não é justo...será que as pessoas abastadas não teem coração identico ao nosso??? Apesar de imensamente comovido, reparo que a impotência referente a tais casos me paralisa os movimentos... em que século vivemos? Uns tanto e outros tão pouco ou nada... que Deus me perdoe, é deveras revoltante... Beijos Eduarda - António Brás

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  4. Isa
    Esse é um quadro que já não é novo.
    Durante o tempo de Salazar,era comum especialmente em regiões do interior. Durante alguns anos,a coisa melhorou um pouco, hoje surge de novo a falta do essencial.
    Não nos podemos acomodar.
    Um beijo

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  5. Cara Quina
    Não, não foi por isto que a nossa geração e a anterior tanto lutaram. E o sonho continua!
    Ser político, não é para qualquer um, são precisos ideais, e esses já estão a rarear.
    Os que se encontram no poleiro,com as suas medidas palacianas,será que acreditam que temos uma sociedade justa?
    Provavelmente sim.
    Eu não me revejo nestas politicas, e a cada dia que passa oiço histórias de pobreza,ultrajantes para a dignidade de qualquer ser humano.
    A nosso modo vamos continuando, contra a corrente instalada.
    Talvez possamos dar algum fruto,ainda.
    Um beijo

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  6. António
    Como deve ter entendido este artigo.
    O meu pai contava-me que lá para as bandas de Trás os Montes, a vida era dura.
    Por isso também lutou, por isso também foi parar aos estaleiros da Pide, por isso me ensinou a necessidade de ser igual, de temros todos as mesmas oportunidades.
    Já se tentou.
    Perante estes retratos, parece-me que não passou de tentativa.
    Está instalada a fome de novo.
    Um beijo e obrigada pela visita.

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  7. Amiga
    O que o Prof. Arnaldo mostra é o dia a dia do que vejo, e sinto nada poder fazer.
    Mesmo não querendo envolver-me, quase todos os dias me aparece pela frente um caso novo, e muitas vezes de onde não espero.
    Obrigada por partilhares estes assuntos tão actuais.
    Um beijo

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  8. Eduarda ,ao ler ,indevidamente , o que escreveu em resposta ao António ,vi que temos algo mais em comum para além dos sonhos e desilusões com as politiquices... Trata-se da passagem de nossos pais pelo que chama de «estaleiros » da pide . É verdade , também o meu por lá passou duas vezes ... Assim não baixar os braços está-nos no sangue . Conheço situações muito difíceis na zona de Queluz -Sintra onde a minha cunhada transmontana e o meu irmão têm uma Associação que apoia crianças , jovens , idosos , desempregados , etc , etc, ...., já faz 23anos . É a Ass. Olho Vivo ... Nem sabe as muitas situações dramáticas que eles tentam ajudar a resolver...Só lhe digo que eles nem sabem o que são férias e fins de semana , tantos são os que há para socorrer... Antes da crise já eram 10 mil ano ; agora já nem sabem ; só sabem que trabalham das 9 às 23 horas , altura em que costumam estar a fazer o jantar ....
    Como vê não sou , não somos de quebrar, apenas ,às vezes ficamos tristes e revoltados .
    Um beijo

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  9. Sabes que por vezes até me custa falar contigo destes assuntos.
    A zona onde trabalhas continua a ser uma das mais maltratadas, pelo que admito que tenhas histórias, que a qualquer um custaria ficcionar, quanto mais vivenciar.
    Mas temos que ter fé e acreditar, que um dia isto vai mudar.
    Beijos

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  10. Eduarda

    Na minha escola é prática, desde há larguíssimos anos, organizarmos cabazes com o essencial para atalhar aos mais carenciados. Todos contribuímos com aquilo que podemos: um quilo de arroz, um litro de leite... Quase todos os professores têm filhos e, por isso, as roupas deles também são distribuídas.

    A minha irmã Tina foi directora daquela escola durante mais de vinte anos e essa prática vem, pelo menos, desde os tempos dela (reformou-se há cinco anos), assim como a prática de fornecer pequeno almoço, almoço e merenda aos miúdos que, apesar de carenciados, não beneficiavam de apoio escolar (alguns deles porque as famílias nem se preocupavam em entregar os papeis necessários. É verdade, a miséria humana chega a esse ponto!).

    Às vezes precisamos de nos cotizar para pagar contas de água e de electricidade...

    Isto vem de há muito, embora os casos de miséria extrema se estejam, agora, a multiplicar.

    Há quem chame caridadezinha àquilo que fazemos, mas eu sinto que fazemos o que devemos. Nada disto devia ser necessário mas, tragicamente, é! Darmos um pouco de nós é a nossa forma de acontribuirmos para que aqueles que nos rodeiam mantenham a dignidade de seres humanos.

    Para além do que escrevi acima, também me não conformo que as prioridades das despesas do Estado e das empresas vão para o pagamento das ajudas de custo dos mais altos funcionários em vez de promoverem o emprego e salários dignos.

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  11. Eduarda

    Desculpa, mas não sei se me despedi.

    Beijos

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  12. Quina
    Bem hajam todos aqueles, que se disponibilizam para ajudar.
    O que me custa muito, é ver que a sociedade civil está a sentir-se na obrigação de substituir o estado nas suas mais primárias obrigações.
    Aquando da candidatura do General Humberto Delgado, à Presidência da República, como sabe à data só os funcionários públicos é que votavam,e davam-lhes os votos já preenchidos com o nome do candidato, ora o sr. meu pai (e muitos outros) tratou de lhes inverter o negócio, oferecendo votos, com o nome do Delgado por troca do já instalado ´Tomáz.Mas lá deve ter tido algum descuido e foi apanhado, a partir daí, foi uma autentica "rebaldaria" com os ditos da Anónio Maria Cardoso.
    Muitos e muitos foram trocados, pelo que sabe-se hoje quem na realidade ganhou as eleições.
    Mas eles não deixaram,mataram o homem e lá continuámos nós sob o abrigo da ditadura.
    Só por este episódio, pode perceber o quanto me arranha, que todas essas lutas, estejam neste momento a ir por água abaixo, até porque já idealizamos tanto, e agora "ILUSÃO" é mera utupia, a não ser...
    Esperemos...e façamos todos um pouco, pode ser que mude.
    Um beijo grande

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  13. Amiga Eduarda!

    É este mesmo o país que temos e está para durar e piorar...
    Sei de facto destas situações.
    Existem mais do que todos imaginamos e estão, muitas vezes, mesmo aqui ao nosso lado e não as vemos.
    Consigo entender o professor e sei dar o valor, também por lá passei, pouco tempo, mas passei, e sei que não é sempre fácil perceber quando o aluno tem um comportamento "anormal"!
    Ainda bem que ele escrever a nota à mãe e a mãe não a ignorou.
    Esse é outro problema. A maior parte das vezes, os encarregados de educação nem sequer respondem às chamadas dos professores e então é quase impossível acudir, saber, ajudar, educar!

    Parabéns por ter trazido um tema tão pertinente quanto urgente como este ao seu Blog.

    beijinhos

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  14. Fátima,
    como concordo contigo em tudo o que contas.
    Talvez publique uma história verídica, sobre a demissão das familias,tal como dizes(alguns deles porque as famílias nem se preocupavam em entregar os papeis necessários. É verdade, a miséria humana chega a esse ponto!).
    De qualquer forma penso que a problemática é um pouco mais densa, não passa só por isso.
    O desaconchego social, já é dramático e embora possamos minorar alguns casos, são tão sómente alguns...
    Beijo e grata pela visita

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  15. Fernanda
    Vivo numa zona, que foi, nem sei se ainda o é, habitada por uma classe, média alta.
    Pois posso garantir-lhe, que existem neste momento casos de carência social aflitivos.
    Embora não considere que o meu concelho seja o espelho do país, o facto é que as escolas estão a dar algum do conforto, que os nossos últimos governos se permitiram retirar.
    Mas enfim, respeitemos o que o povo escolheu, embora, como não concordo, não abafo a minha voz.
    Um beijo grande

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